sábado, 30 de maio de 2020

Brasileiros identificam 13 regiões distintas da flora amazônica.

Biólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) analisaram a distribuição geográfica de mais de 5 mil espécies de plantas para construir o mapa

Distribuição espacial das 13 sub-regiões florísticas identificadas para a Amazônia, de acordo com estudo feito por pesquisadores da UFRN (Foto: Karla Souza / Arquivo pessoal)

A floresta amazônica contém 13 regiões diferentes, cada qual com espécies de plantas particulares. É o que diz um novo estudo desenvolvido com mais de 5.000 espécies de árvores e de arbustos publicado na revista britânica Journal of Ecology. No trabalho, realizado por dois biólogos do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Karla Juliete Silva-Souza e Alexandre Souza, as regiões distintas foram chamadas de sub-regiões florísticas. Algumas das sub-regiões são grandes e dividem a Amazônia entre áreas a leste, a oeste e a norte (no planalto das Guianas). Outras regiões são pequenas e periféricas, contendo espécies de vegetações vizinhas como o cerrado, que penetram pelas bordas na Amazônia.

Para realizar o estudo, os pesquisadores compilaram um banco de dados, idealizado e batizado por Alexandre Souza de Caaporan (floresta bonita em tupi), contendo a distribuição geográfica de mais de 5.000 espécies de árvores e de arbustos encontrados na região. Eles aplicaram técnicas de estatística espacial sobre os dados, mapearam as sub-regiões e também construíram outro banco de dados contendo informações do ambiente para cada local onde as espécies foram registradas. Análises da compilação das informações permitiram aos cientistas investigar os fatores responsáveis pela distribuição e delimitação das várias “Amazônias”. Os resultados sugerem que a distribuição das sub-regiões está associada a ações humanas e a fatores ambientais, como variações do solo, regime de chuvas e inundação pelos rios.

Pioneirismo: divisão por composição de espécies

O estudo constitui a primeira divisão espacial da flora amazônica feita com base em dados de composição de espécies. “A delimitação e mapeamento de sub-regiões de espécies animais ou vegetais é muito importante para planejamentos de conservação da biodiversidade de uma região, pois permite aumentar o número de espécies protegidas. Isso acontece porque passa a ser possível a distribuição de áreas de proteção nas diversas sub-regiões identificadas”, explica Karla Souza.

Tentativas anteriores de divisão da Amazônia foram realizadas com base na aparência da vegetação, observação das predominâncias de ervas, arbustos ou árvores e se as plantas perdiam ou não as folhas na estação seca. Apesar do valor e da utilidade desses primeiros mapas produzidos, o presente estudo mostrou que várias sub-regiões florísticas distintas podem ter a mesma aparência. “Mapas baseados na aparência da vegetação não devem ser usados como indicativo da biodiversidade e não são eficazes nos esforços para aumentar o número de espécies protegidas”, adiciona Karla.

A floresta amazônica forma a região biologicamente mais rica do planeta. Ela cobre vastos 7.500.000 km² em nove países, o que equivale a 40% da América do Sul. Ela abriga um quarto da biodiversidade global e é uma das principais forças do funcionamento climático e biogeoquímico da Terra. A crescente perda e fragmentação de florestas devido à invasão de assentamentos e agricultura extensiva na Amazônia traz consequências para as populações humanas e demais formas de vida no planeta. As populações humanas dependem de forma direta ou indireta dos serviços produzidos pela biodiversidade da floresta amazônica, seja pela estabilização do regime climático ou pela utilização de espécies para produção de medicamentos, alimentos, cosméticos e outros produtos.

Impacto das mudanças climáticas

O mapeamento de sub-regiões florísticas da Amazônia produzido no estudo poderá ser utilizado para guiar os esforços de conservação da biodiversidade das plantas amazônicas. “A relevância que encontramos de fatores como o regime de chuvas e temperatura na explicação da distribuição espacial das sub-regiões alerta para um profundo impacto que as mudanças climáticas podem ter na organização espacial da flora amazônica. O aumento da frequência de anos secos na região deve promover a expansão de certas sub-regiões e a contração de outras, ameaçando a área disponível para milhares de espécies de árvores continuarem a viver e a prestar os seus serviços à humanidade”, analisa Alexandre Souza.

Fonte: Revista Galileu

Empresa desenvolve material semelhante a plástico produzido a partir de plantas.

Um projeto pioneiro quer trocar a produção de plástico a partir de derivados de combustíveis fósseis por plantas. O plano idealizado pela companhia de produtos químicos renováveis Avantium tem o apoio de empresas como Coca-Cola, Carlsberg e Danone.

A iniciativa ganha relevância diante do fato de que são produzidas 300 milhões de toneladas de plástico por ano no mundo e o descarte desse material contribui para a crise climática e poluição dos oceanos.

O novo material semelhante a plástico é feito a partir de açucares de milho, trigo e beterraba. Os testes mostram que o produto pode se decompor por completo em um ano em composteira e em alguns anos se deixados em condições externas naturais. Mas o ideal é que seja reciclado. Do ponto de vista da sustentabilidade, esse plástico não usa combustíveis fósseis e, além de poder ser reciclado, degrada bem mais rápido do que o usado hoje quando na natureza.

Crédito da imagem: Avantium

O plano é que o plástico à base de planta esteja nas prateleiras de supermercados em 2023. O projeto inicial produzirá 5 mil toneladas de plástico por ano. A Avantium espera que a produção aumente conforme a demanda por plástico sustentável. Também planeja usar açúcares vegetais provenientes de resíduos biológicos de origem sustentável, para não afetar a cadeia de fornecimento de alimento.

Plástico

O plástico que usamos hoje permanece muito tempo no ambiente, uma garrafa de água feita de plástico leva 450 anos para se decompor e canudos levam 200 anos. De acordo com estudo da WWF, mais de 104 milhões de toneladas de plástico poluirão os ecossistemas até 2030, se nada mudar. O volume de plástico que vaza para os oceanos todos os anos é de aproximadamente 10 milhões de toneladas.

De acordo com o estudo, a invenção do plástico trouxe benefícios, mas o descarte do material após uso único fez com que essa inovação se tornasse um problema ambiental. Dados do Banco Mundial apontam o Brasil como 4º maior produtor de lixo plástico do mundo, com 11,3 milhões de toneladas. Desse total, apenas 1,28% é reciclado, sendo que a média global de reciclagem plástica é de 9%.

A queima do plástico pode liberar gases tóxicos, o descarte ao ar livre polui aquíferos, corpos d’água e reservatórios. O microplástico e o nanoplástico também podem contaminar o solo e a água.

Fonte: Hypescience

quinta-feira, 28 de maio de 2020

‘Agricultores podem ser aliados na proteção da Amazônia, o que não podemos é aceitar milícias e bandidos’, diz pesquisador.

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Pesquisador diz que agricultores podem ser aliados na proteção da Amazônia

O ritmo atual de desmatamento da Amazônia — que cresce sem parar pelo segundo ano consecutivo — é, além de um enorme problema ambiental, uma tragédia socioeconômica, afirma o ambientalista brasileiro Beto Veríssimo, fundador da consultoria Imazon, diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia e pesquisador associado da Universidade de Princeton.

O discurso que põe em lados opostos o desenvolvimento econômico e a preservação da Amazônia, diz ele, é falso. “Desmatamento não gera desenvolvimento, não gera aqui e em lugar nenhum no mundo. E ele inibe investimento — que investidor sério vai querer investir na Amazônia, rodeada por ilegalidade?”, diz, em entrevista à BBC News Brasil.

Veríssimo afirma que seria possível aumentar muito a produção agrícola na Amazônia sem desmatar um só hectare — aproveitando terras já degradadas em décadas passadas. No entanto, diz, é preciso ao mesmo tempo reforçar a fiscalização e punição de infratores.

“Não tem como contemporizar com desmatadores ilegais, ladrões de florestas públicas, extratores ilegais de madeira. Para a ilegalidade, a força da lei”, diz ele.

Ele diz que “a presença do Exército é bem-vinda”, ao comentar o decreto do governo que colocou, de maio a junho, as rédeas das ações de fiscalização e combate ao desmatamento nas mãos das Forças Armadas — tirando-as do Ibama, que passou a ser subordinado aos militares.

Mas diz que é cedo para avaliar o resultado das operações militares realizadas até agora. O governo anunciou que, até o dia 21/05, “26 pessoas foram presas por delitos ambientais e outros crimes durante as ações do Exército, e que foram aplicadas multas no valor de R$ 8,7 milhões”. Além disso, foram apreendidos motosserras, tratores, caminhões e embarcações.

O fato de o Exército ter descartado a destruição do equipamento apreendido, entretanto, preocupou Veríssimo. “Se não usarmos essas medidas (destruição de equipamento apreendido), que são comprovadamente eficazes, eu tenho um pouco de dúvida se vão conseguir combater o desmatamento”, diz.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida à BBC News Brasil, em que pesquisador alerta para as graves consequências do aumento do desmatamento. Ele também comenta a fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que é preciso aproveitar a pandemia para “passar a boiada” na mudança de legislação ambiental.

BBC News Brasil – O último boletim de desmatamento da Amazônia do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), de abril, registrou um aumento de 171% em relação a abril de 2019. O que explica esse aumento expressivo?

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Pesquisador disse que, apesar da pandemia, desmatamento segue em alta na Amazônia

Beto Veríssimo – Apesar da diminuição da atividade econômica por causa da pandemia, o desmatamento esse ano, não só em abril, mas em todos os meses, tem se mantido em uma tendência de alta. E isso tem uma explicação dupla: uma é a menor presença da fiscalização no campo. O segundo fator é o fato de que governo não prioriza o combate ao desmatamento.

O calendário do desmatamento vai de agosto de 2018 até julho de 2019, então pega pouco do governo Temer. Mas neste ano, de agosto de 2019 até julho de 2020, vai ser totalmente na conta do governo atual. Ainda faltam dois meses para termos os números, mas toda a tendência é que a gente vai ter mantido esse crescimento, com um aumento seguido do desmatamento por dois anos. É bastante preocupante.

BBC News Brasil – Como a mudança do comando das operações de fiscalização do Ibama para o Exército afeta esse cenário? As operações que o Exército tem feito estão tendo algum efeito no combate ao desmatamento?

Veríssimo – As operações começaram em abril e maio. É cedo para dizer se vai ter impacto, nos dados de maio, que saem em junho, vai ficar mais claro se a ação das Forças Armadas está conseguindo. O que a gente sabe, historicamente, é que há um efeito positivo quando há uma operação de combate ao desmatamento ostensiva, com a presença de aparato policial — porque o Ibama não tem força policial, eles precisam do aparato da Polícia Federal, do Exército etc. Então a presença do Exército é bem-vinda, a gente está em uma situação muito complicada na Amazônia. Mas não dá para dizer ainda se vai ter efeito da maneira como eles estão fazendo.

BBC News Brasil – Como você avalia o que eles têm feito até agora, como o comando da operação ter mudado para o Exército e essa decisão de não destruir os equipamentos dos criminosos ambientais pegos em flagrante?

Veríssimo – O ideal nessas operações é contar com a parceria de todas as instituições, da Polícia Federal, do Ibama, do Exército — e o Ibama tem todo o know how de como fazer, esse conhecimento não pode ser ignorado.

A destruição dos equipamentos é recomendada. Tem duas maneiras de inibir o infrator, (que comete) o desmatamento ilegal. Uma é prendendo, mas o infrator normalmente não está lá, é um laranja, um funcionário. A outra, mais eficaz, é quando você penaliza o infrator, quando o crime é claramente configurado, destruindo o equipamento. É como quando há apreensão de droga, você tem que incinerar a droga. A carga, quando a madeira é ilegal, tem que ser apreendida. Não tem como contemporizar com desmatadores ilegais, ladrões de florestas públicas, extratores ilegais de madeira. Para a ilegalidade, a força da lei.

Não tem como contemporizar com desmatadores ilegais, ladrões de florestas públicas, extratores ilegais de madeira. Para a ilegalidade, a força da lei

Se não usarmos essas medidas, que são comprovadamente eficazes, eu tenho um pouco de dúvida se vão conseguir combater o desmatamento (com as operações). A gente já observou no passado que o que de fato faz com que outros desmatadores, que estão nos arredores daquele local sendo fiscalizado, parem de desmatar, é quando você apreende e destrói equipamentos. Quando isso acontece, os infratores de fato diminuem sua atividade num raio expressivo com medo de prejuízos econômicos importantes. Eles não têm muito medo de ser presos, acabam sendo soltos.

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‘A gente já observou no passado que o que de fato faz com que outros desmatadores, que estão nos arredores daquele local sendo fiscalizado, parem de desmatar, é quando você apreende e destrói equipamentos’

BBC News Brasil – O risco aos fiscais e ambientalistas aumentou também nesse momento de alto desmatamento?

Veríssimo – A gente teve um episódio em que um fiscal do Ibama foi agredido na região do Pará, teve uma tentativa em Rondônia de emboscar fiscais… A gente não tem um levantamento, mas eu diria o seguinte: a gente está assistindo um aumento do desmatamento na Amazônia, isso é um fato, está observando que esse desmatando está acontecendo em regiões onde há pouca presença do Estado, onde há muitos crimes ambientais associados (extração ilegal de madeira, garimpo ilegal, invasão de florestas públicas). Isso tudo configura uma ambiente de ilegalidade nocivo e perigoso.

BBC News Brasil – Existe um discurso, que é bastante encampado pelo atual governo, que contrapõe o desenvolvimento econômico à preservação da Amazônia, como se as leis de proteção fossem burocracias que atrasam o desenvolvimento. Existe alguma realidade nesse argumento?

Veríssimo – Não. As pessoas confundem. O desmatamento da Amazônia não melhorou a economia da Amazônia. Nos anos 1970, quando 99% da floresta ainda estava em pé, a região participava do Produto Interno Bruto mais ou menos na mesma proporção que participa hoje. E nesse meio tempo você desmatou 20% da Amazônia, tem o dobro disso de degradação. Ou seja, o modelo baseado no desmatamento não gerou prosperidade na Amazônia, não gerou desenvolvimento econômico, não gerou progresso social — a gente está vendo agora o drama da saúde, que é um problema endêmico e se agrava com o coronavírus. Então, desmatamento não gera desenvolvimento, não gera aqui e em lugar nenhum no mundo. E ele inibe investimento — que investidor sério vai querer investir na Amazônia, rodeada por ilegalidade?

O desmatamento está acontecendo muito mais nesse caráter especulativo do que no caráter produtivo. Ninguém está expandindo o desmatamento para aumentar a produção de soja — está se desmatando onde a produção agrícola não está presente, em regiões afastadas. O que é uma tragédia pro Brasil. É um roubo de patrimônio público, você tem um prejuízo para os cofres, tem um prejuízo ambiental, tem um ambiente conflagrado de conflitos que impede bons investimentos econômicos.

O desmatamento é, sobretudo, uma tragédia socioeconômica, que beneficia grupos muito pequenos de setores que operam na ilegalidade.

Você tende a piorar a situação social daqueles territórios. Acaba criando municípios que são incapazes de ter uma arrecadação suficiente para ter serviços públicos, o que onera o contribuinte brasileiro… é o pior dos mundos. A situação do Amazonas com a pandemia é um exemplo dessa precariedade. Destrói recursos naturais, mantém pobreza, inibe investimentos e aumenta ilegalidade.

O desmatamento de fato é um problema ambiental, essa é a face que a gente conhece e a face que o mundo inteiro se preocupa. Mas o desmatamento é, sobretudo, uma tragédia socioeconômica, que beneficia grupos muito pequenos de setores que operam na ilegalidade.

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‘O desmatamento inibe investimento — que investidor sério vai querer investir na Amazônia, rodeada por ilegalidade?’

BBC News Brasil – Como promover o desenvolvimento sem destruir o meio ambiente?

Veríssimo – É como se a gente tivesse três Amazônias. Existe uma, que tem 20% das áreas desmatadas, que corresponde ao leste do Pará, ao sul do Pará, centro-norte do Mato Grosso, penetra no meio de Rondônia, algumas faixas no sul do Amazonas e do Acre. Essa é uma área que de fato o governo deveria ter um foco no desenvolvimento, na assistência técnica, no aumento da produção agropecuária. A gente precisa de fato alocar os recursos escassos do governo para aumentar a produtividade com o uso das áreas que já foram desmatadas, apoiar produtores nessa área.

Se os recursos escassos fossem focados para esse território, a gente poderia ter um aumento de renda e produtividade sem desmatar um hectare. Nessa faixa toda existem muitas áreas que estão subaproveitadas. De cada dez hectares desmatados, apenas um tem produtividade agropecuária na média da produtividade brasileira. Seis têm produtividade abaixo (da média). E três não têm nada, o capim ficou áspero e cheio de espinho, nem o boi quer mais. São áreas que hoje não produzem mais nada.

Temos também uma segunda Amazônia, que corresponde a uns 40%, com municípios gigantes, como Altamira, no sul, centro-norte e centro-sul do Amazonas, grande parte da parte central do Pará — é uma área de floresta, que não faz o menor sentido desmatar. Com o desmatamento, estamos levando pobreza, crime organizado, não vai gerar riqueza para o país — nessa área temos que combater, temos que fazer um foco ostensivo de controle.

E temos ainda uns 40% de terras indígenas, de unidades de conservação, que estão ainda relativamente protegidas, quase que passivamente, porque não são alvo ainda de grandes ameaças. Não quer dizer que elas estão imunes, mas elas estão relativamente protegidas.

O que a gente precisa na Amazônia é uma agenda de uso inteligente dos recursos, de aproveitamento das áreas que foram desmatadas até 2008 e de proteção das áreas de floresta.

BBC News Brasil – Como a aprovação da PL 2633/2020, sobre regularização fundiária de terras da União, que ganhou o apelido de PL da grilagem, pode afetar esse quadro?

Veríssimo – A regularização é importante, mas precisa ser feita com cuidado, em área já consolidadas, com duas, três décadas de produção, onde o desmatamento aconteceu até 2008 (ano determinado como linha de corte pelo Código Florestal), onde há de fato produtores, não especuladores. Quem continuou desmatando depois dessa data, invadiu florestas públicas, é um movimento totalmente diferente, não pode regularizar áreas que foram griladas. E os produtores regularizados vão ter que respeitar o Código Florestal.

Então essa regulação depende de onde, com quais condições. É preciso que haja um grande debate para separar o interesse legítimo e o ilegítimo, e é algo que não tem condições de acontecer no meio de uma pandemia, precisa ser quando o país tiver com oxigênio para discutir isso.

BBC News Brasil – Em um vídeo de uma reunião do presidente com ministros divulgado na semana passada, o ministro Ricardo Salles diz que é preciso aproveitar o “momento de tranquilidade” em que a atenção da mídia está voltada para o coronavírus para “passar a boiada” e aprovar diversas flexibilizações. Que tipo de medidas são essas, que poderiam ser aprovadas sem a atenção da mídia? Como você avalia as consequências dessa postura do governo?

Veríssimo – Ele não diz quais são as medidas. O dever dele, inclusive constitucional, deveria ser de preservar. Mas o que a gente está assistindo desde 2019, quando houve a posse (do presidente) é que essas falas não são apenas falas, elas se traduzem em resultado. (O presidente Jair Bolsonaro) já dava (antes) sinais, mensagens, já dizia que não ia criar novas áreas protegidas, não ia criar reservas indígenas. A gente vê que sinais e mensagens se tornam políticas que acabam favorecem o aumento do desmatamento. E o perigo é que se tomem outras medidas que possam agravar ainda mais o problema.

Então houve um recrudescimento, esse governo na verdade não teve nenhuma proposta de preservação do meio ambiente, as falas são no sentido de que (eles não enxergam) o desmatamento como um problema.

BBC News Brasil – A situação da Amazônia tem atraído muito a atenção da mídia internacional. Como está a imagem do Brasil no exterior quanto a isso? E como isso pode afetar o país?

Veríssimo – A questão do coronavírus trouxe luz para como a destruição ambiental gera um impacto. Temos diversas doenças que vêm de animais que tiveram habitats destruídos, que vêm de florestas tropicais. E os impactos da destruição da Amazônia para o clima vão ser muito mais dramáticos do que um único vírus, então o mundo inteiro está muito preocupado com isso, muito preocupado com o Brasil.

A questão do coronavírus trouxe luz para como a destruição ambiental gera um impacto. Temos diversas doenças que vêm de animais que tiveram habitats destruídos, que vêm de florestas tropicais

Então, com certeza, conforme aumenta a destruição, aumenta também a pressão internacional sobre o país, não só de governos, mas empresas, corporações. Então “se é da Amazônia eu não compro”, “se é da Amazônia eu não invisto”, o impacto econômico pode ser muito grande.

A destruição da Amazônia pode parecer algo muito longe, muito distante da realidade do dia a dia das pessoas. Mas as consequências não são restritas àquela região. Como a destruição desse ambiente vai afetar alguém que está em SP ou em PE? Tem várias formas em que afeta, mas três principais.

Uma é essa questão da saúde — da possibilidade de pandemias vindas da destruição do ambiente, de problemas respiratórios que podem se agravar com as queimadas. A fumaça das queimadas não atinge muito o Nordeste, mas atinge o Sudeste, chega até o Paraná. E gera problemas respiratórios graves, piores ainda em momento de uma pandemia de uma doença que afeta o sistema respiratório como a covid-19.

Outro aspecto principal é como a destruição Amazônia afeta as mudanças climáticas, ela é enorme, tem muito carbono, ela é realmente um termômetro do mundo, afetas as chuvas, os ventos, o clima do país e do mundo inteiro. É um impacto tremendo, não estamos falando de milhares estamos falando de uma escala de dezenas de milhões de pessoas.

E afeta também a economia do país — grande parte do PIB brasileiro depende das águas da Amazônia, de um regime de chuvas que é afetado pelo desmatamento, então sua destruição é um risco enorme para a própria economia. E os agricultores, produtores agropecuários, a maioria têm consciência disso. Os agricultores podem ser aliados, o que não podemos é contemporizar com ladrões de florestas públicas, milícias, bandidos especuladores.

Fonte: BBC

Enquanto desmatamento dispara, pesquisadores alertam para o risco de novas epidemias.

Perturbação dos ecossistemas é o fator principal na passagem de doenças de animais para seres humanos.

Área de floresta ilegalmente desmatada próxima à terra indígena Menkragnoti, entre Mato Grosso e Pará. Desde a década de 1930, sabe-se que a degradação ambiental é fator fundamental para o surgimento de novas epidemias.
FOTO DE MARCIO ISENSEE E SÁ/GETTY IMAGES

Com 5,5 milhões de km2, a Amazônia é maior floresta tropical e abriga um terço da biodiversidade do planeta. As dezenas de milhares de espécies que ali habitam coexistem em graus moderados de competição e predação. Cada uma, por sua vez, abriga parasitas como vírus, protozoários e bactérias que também convivem harmoniosamente no ciclo silvestre.

Seja desmatamento, degradação, queimadas, urbanização ou mudança do uso do solo ou de hábitos alimentares dos humanos, perturbações em ecossistemas provocam uma ruptura no equilíbrio silvestre capaz de propiciar a emergência de uma nova zoonose.

“Na cadeia alimentar, as plantas sustentam todo o ecossistema. Quando são retiradas, ocorre uma cascata trófica”, observa Gabriel Laporta, biólogo especialista em saúde pública e bioestatística. Ele é pesquisador científico do setor de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação do Centro Universitário de Saúde ABC.

Enquanto esse sistema começa a entrar em colapso, as espécies que estão lá dentro tentam sobreviver de alguma forma. Diante da alta demanda por energia via cadeia alimentar, os predadores do topo acabam sendo os primeiros a fugirem ou a sucumbirem à destruição de seu habitat. Entre as espécies que conseguem sobreviver, estão os vírus. Com alta capacidade de mutação e variação gênica, esses parasitas são mais resilientes às mudanças e, geralmente, conseguem encontrar alternativas de transmissão e persistência.

“O fato é que toda vez que há uma mudança brusca na paisagem, ou seja, de intacta para degradada, esse processo permite a emergência de novos patógenos”, continua Laporta. “Então, há uma grande probabilidade de termos uma origem pandêmica a partir de vírus emergentes decorrentes do desmatamento e do processo de colapso dos ecossistemas da Amazônia.”

Disparada no desmatamento

Na semana passada, a Justiça Federal do Amazonas acatou pedido do Ministério Público Federal (MPF) e determinou que os órgãos de fiscalização ambiental realizem operações imediatas de comando e controle em ao menos dez áreas mais críticas na Amazônia. As regiões vivem sob ameaça constante da ação ilegal de madeireiros, grileiros e garimpeiros e foram alvo de “60% de toda degradação ambiental” da floresta tropical em 2019.

“O contexto de recrudescimento das infrações ambientais representa uma dupla ameaça”, constata o MPF, no documento, “ao meio ambiente, já abalado pelas violações perpetradas em 2019, com altas taxas de desmate e queimadas, e às populações amazônicas, especialmente povos e comunidades tradicionais, expostos à contaminação pela covid-19 em função da presença de madeireiros, grileiros, garimpeiros na floresta”.

A decisão liminar foi publicada na noite da última quinta-feira, 21 de maio, pela 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas. O pedido do Ministério Público Federal foi encaminhado para a Funai, o ICMBio, o Ibama e a Advocacia-Geral da União e assinado pela juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe.

“Existem terras indígenas e outros territórios tradicionais dentro e no entorno de todos os dez hotspots de ilícitos ambientais identificados pelo Ibama”, aponta o MPF. “Nessas dez regiões, espalhadas pela Amazônia, há especial risco para as populações tradicionais e agrárias, derivado especificamente da presença maciça de infratores ambientais, já que esses agentes delitivos seguem sua trajetória de ilícitos sem que o Estado se faça adequadamente presente, seja para defender o meio ambiente, seja para proteger os povos e culturas da Amazônia.”

De 1º de agosto de 2019, quando tem início o calendário anual do desmatamento, até 21 de maio, o Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter) já emitiu 28.709 alertas de de supressão da cobertura vegetal em 6.058,51 km2 da Amazônia Legal. O programa de monitoramento é do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe). Praticamente um quinto desta área identificada pelo Deter (1.048,38 km) sofreu corte raso a partir de 13 de março, dia em que foi notificado o primeiro paciente diagnosticado com covid-19 no Amazonas. Até 24 de maio, o estado registrou 29.867 pessoas infectadas pelo novo coronavírus e 1.758 óbitos em decorrência da doença, com a maior taxa de mortalidade do país: 42,4 a cada 100 mil habitantes. O Ministério da Saúde lista um total de 95.389 infectados (26% dos casos no Brasil) e 5.212 mortes (23%) nos nove estados que compõe a Amazônia.

Apesar dos crescentes índices de desmatamento ilegal na Amazônia, o MPF constatou que a União “não vem adotando as medidas previstas no Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia”. Houve um “afrouxamento da atividade fiscalizatória federal, exemplificada pelo número de autos de infração lavrados pelo Ibama por ilícitos ambientais”.

No Amazonas, o MPF aponta que apenas quatro operações de fiscalização aconteceram em 2019, contra 45 em 2018. Ressalta também que o Ibama lavrou apenas 201 autos de infração – no ano anterior, foram 360. “O mesmo fenômeno de afrouxamento de fiscalização se verificou no ICMBio, órgão responsável pelo enfrentamento de ilícitos ambientais em unidades de conservação federais”, continua o MPF, tendo como base o fato de que foram realizadas apenas 13 das 83 ações de fiscalização programadas para 2019.

Fiscais do Ibama analisam árvore cortada por desmatadores em Boa Vista do Pacarana, Rondônia. Em decisão da Justiça Federal que determina que órgãos de fiscalização ambiental realizem operações imediatas de comando e controle em ao menos dez áreas mais críticas na Amazônia, a juíza Jaiza Fraxe alerta para a diminuição de autos de infração pelo Ibama – apenas 201 em 2019 contra 360 no ano anterior.
FOTO DE FELIPE FITTIPALDI

O Prodes, programa do Inpe que calcula a taxa anual oficial de desmatamento, identificou que 9.762 km2 da vegetação da Amazônia foi ilegalmente suprimida de 1º de agosto de 2018 a 31 de julho de 2019 – uma alta de 30% em relação ao mesmo período do ano anterior e o maior valor registrado na última década. A remoção da cobertura vegetal em terras indígenas subiu 74% e dobrou dentro de unidades de conservação. Na decisão, a juíza federal Jaiza Fraxe aponta que os últimos dados do Deter indicam que a região caminha para outra alta histórica de desmatamento anual.

Origem silvestre do coronavírus

Para Laporta, a emergência do coronavírus em pangolins-malaios pode ilustrar como a interferência humana contribui para o surgimento de uma nova zoonose. Nas florestas tropicais primárias da Malásia, pangolins e morcegos insetívoros estão no mesmo patamar da cadeia alimentar, porém pouco interagiam entre si, observa o biólogo. Com o desmatamento crescente na região, os pangolins tiveram de buscar alimento e abrigo em outros lugares. Nas áreas cultivadas, encontraram em abundância seu “prato favorito”: formigas. Na ausência das grandes árvores sob as quais dormiam na floresta, passaram a se abrigar em cavidades de pedra – locais habitados por morcegos, mamíferos conhecidos por serem reservatórios de vários tipos de coronavírus.

“O desmatamento causou um colapso nesse ecossistema e a aproximação de duas espécies que tinham uma interação muito distante”, explica Laporta. “Essa briga por comida facilitou a transferência e a mutação de coronavírus de morcegos para pangolins. Já a entrada dos pangolins em áreas desmatadas permitiu uma alta frequência de caça, porque há um interesse econômico grande por eles naquela região. Isso pode ter favorecido a disseminação, primeiro, entre os pangolins, mas também na emergência desses vírus nos seres humanos.”

A origem do Sars-CoV-2 ainda é investigada pela comunidade científica. A principal suspeita é de que tenha surgido em morcegos, mas cientistas chineses têm estudado a hipótese de que pangolins-malaios sejam potenciais vetores intermediários do novo coronavírus. Em artigo publicado na revista científica Nature em 26 de março, pesquisadores das universidades de Hong Kong e Shantou identificaram coronavírus com material genético similar ao do Sars-Cov-2 em pangolins resgatados em uma operação anti-tráfico de animais no sul da China. Em outro estudo da mesma publicação, de 7 de maio, cientistas de Guangzhou consideraram, após análise genômica, que o Sars-CoV-2 pode ter origem na recombinação de um coronavírus da cepa de um pangolim (Pangolin-Cov) com outro comum em morcegos (RaTG13).

Conservação como prevenção

De fevereiro de 2015 a março de 2019, Gabriel Laporta realizou uma série de pesquisas sobre a dinâmica de transmissão da malária na Amazônia, em diferentes níveis de fragmentação da paisagem. A doença é causada pelo protozoário Plasmodium falciparum e transmitida pelo mosquito Anopheles darlingi. O protozoário já existia entre primatas da África Equatorial e estudos sugerem que tenha passado a circular entre humanos há 6 mil anos, com a expansão da agricultura nas regiões tropicais e subtropicais africanas. O vetor chegou ao Brasil em navios negreiros, entre os séculos 16 e 19. Na Amazônia, a doença se alastrou com mais força nos anos 1970, durante a intensa ocupação da floresta tropical fomentada pelo Plano de Integração Nacional, dos governos da Ditadura Militar.

Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles dá entrevista durante operação de combate ao comércio ilegal de madeira em Espigão d’Oeste (RO) em 2019. A medida que o desmatamento na Amazônia bate novos recordes, aumentando o risco de novas zoonoses, o Salles disse em reunião ministerial que “precisa haver um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.
FOTO DE FELIPE FITTIPALDI

Em seus estudos, Laporta constatou que o ecossistema amazônico permanece em equilíbrio quando há de 70% a 100% de cobertura florestal na região. Já uma área que apresenta maior risco para surtos de malária se dá quando a perda de vegetação gira entre 30% a 70%. Abaixo de 30%, o mosquito não consegue sobreviver nas áreas urbanas ou altamente degradadas – isso diz respeito exclusivamente a este vetor, ressalta o biólogo.

“A maior parte dos assentamentos rurais com alto índice de malária são paisagens fragmentadas com em torno de 50% de cobertura florestal, em que o mosquito tem recursos, não encontra competição e coexiste com o homem de forma muito íntima”, explica Laporta.

A alta incidência da doença nessas ocupações é agravada pela falta de imunidade à malária dos desmatadores que ocupam esses assentamentos, uma vez que costumam migrar de outras regiões. A infraestrutura precária das moradias é outra questão. Além de assentamentos rurais, surtos de malária também acontecem em garimpos ilegais. A degradação ambiental de ambas atividades no entorno ou dentro das terras indígenas são capazes de criar uma “paisagem patogênica para os indígenas”, observa o biólogo.

“Se derrubarem todas as florestas, perdemos os serviços ecossistêmicos. Não teremos água para beber, nem solo fértil, nem conforto climático. Teria um absurdo de tempestades e eventos climáticos extremos severos”, analisa a bióloga Marcia Chame, pesquisadora e coordenadora da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Além disso, um dos piores efeitos é que as espécies que saem de uma floresta destruída e são capazes de migrar ao ambiente urbano “seriam as melhores transmissoras de doença”, diante alta capacidade de adaptação e dos sistemas imunológicos abrangentes e resistentes. “Então, o melhor a fazer é termos as maiores áreas naturais possíveis bem preservadas. Temos encontrado situações que apontam que a presença de um número grande de espécies hospedeiras na biodiversidade dilui o processo de transmissão de doenças.”

Com o avanço da degradação ambiental no país, principalmente nos últimos dois anos, Chame observa que a febre amarela silvestre tem ocorrido em um “padrão diferenciado, o que não se via há muitos anos”, um avanço significativo de Chagas nas áreas de degradação da Amazônia, com outros ciclos de doenças, e um aumento da circulação de vírus como o oropouche e a hantavirose, em surtos pequenos no Brasil todo.

Em 2006, Marcia Chame coordenou o Informe Nacional de Espécies Exóticas Invasoras no Brasil, o primeiro levantamento do gênero feito no país, realizado pelo Ministério do Meio Ambiente e pela Fiocruz. A lista foi revisada e atualizada em dezembro de 2018, em relatório da Plataforma Institucional de Biodiversidade e Saúde, da Fiocruz. Os pesquisadores identificaram 101 espécies que afetam a saúde humana, a maioria introduzida no período colonial através das navegações, das quais 86,8% já se expandiram pelo Brasil. São vírus, bactérias, helmintos, fungos, protozoários, moluscos, artrópodes e plantas que entraram no país de alguma forma como, por exemplo, em meio a humanos adoecidos ou vetores como os mosquitos. Além do impacto às pessoas, a Fiocruz identificou que esses parasitas exóticos ameaçam 7,5% das 16 mil espécies brasileiras em risco de extinção.

A bióloga destaca o Aedes aegypti como “nosso grande marcador do que é o impacto da entrada de uma espécie exótica”. Esse mosquito teve origem no Egito e se espalhou para as regiões tropicais e subtropicais do planeta no século 16. A primeira descrição científica remonta à 1762. No começo do século 20, a espécie foi identificada como transmissora da febre amarela urbana no Brasil, até ser erradicada em 1955, fato reconhecido pela Organização Mundial da Saúde três anos depois. Contudo, o vetor se manteve em territórios amazônicos da Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname, além de toda a América Central, Caribe e Sul dos Estados Unidos. Em 1960, o relaxamento das ações de controle e a “dispersão passiva dos vetores” – via deslocamentos humanos marítimos ou terrestres – resultaram na reintrodução do Aedes aegypti no Brasil. Hoje, o mosquito habita e provoca endemias de dengue, zika e chikungunya em todos os estados.

Dinâmicas das zoonoses

Nos anos 1930, Yevgeny Pavlovsky, médico parasitologista russo, elaborou o conceito da biocenose e a teoria dos focos naturais das doenças transmissíveis depois de observar que a expansão agrícola da União Soviética sobre territórios asiáticos provocara problemas de saúde pública – surtos de leishmaniose na Ásia Central e de encefalites por arbovírus na Sibéria.

“O agente vive em um ambiente sem causar desequilíbrio, em harmonia. Desde que não tenha nada que lhe prejudique, ele permanece ali, inerte, em latência”, observa Antonio Magela, médico infectologista e diretor de assistência médica da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, em Manaus (AM). “Mas, quando acontece alguma alteração, seja no próprio agente ou nas condições ambientais, acontece a patobiocenose. Ou seja, tenho atores suficientes que, se interagirem, podem determinar uma capacidade de causar doença.”

Nessa dinâmica, Magela aponta a capacidade de mutação dos vírus. Este tipo de agente etiológico tem facilidade para alterar seu material genético, a fim de garantir a sobrevivência da espécie na natureza. O problema é que, com essas mutações, os vírus podem se transformar a ponto de alterar seu grau de virulência.

Entre as principais espécies hospedeiras, Magela destaca o porco. O animal é capaz de abrigar, ao mesmo tempo, tipos de vírus que causam gripes em aves, humanos e neles próprios. Esses agentes podem interagir no organismo do suíno e trocar material genético. Dessa combinação, pode surgir um novo vírus. “Então, é preciso que um agente tenha uma modificação, às vezes no material genético, e encontre um hospedeiro mais suscetível, onde possa se albergar e desenvolver um ciclo reprodutivo e passar por mutações genéticas”, continua o infectologista. “No início, são só tentativas de adaptação, mas o resultado disso é imprevisível. Pode ser que daqui surja um ser inerte, ou uma espécie muito virulenta e de alta letalidade.”

O conceito da “Tríade Ecológica” foi elaborado por Hugh Rodman Leavell e Edwin Gurney Clark na década de 1960. Os médicos americanos descrevem as razões que determinam a emergência de uma doença em respectivo local – dinâmica que engloba o agente infeccioso, o hospedeiro e o ambiente. A emergência de um novo patógeno é resultado da forma e da constância das interações entre esses três atores. Já a gravidade da epidemia depende de outra série de fatores. “As condições sociais, econômicas, os hábitos de vida da população vão determinar se essa doença terá um nível de gravidade maior ou menor, se durará muito ou pouco, se terá rápida disseminação e grande letalidade”, considera Magela.

As características do agente infeccioso também ditam o rumo da epidemia. A transmissibilidade significa a capacidade dele migrar de um reservatório para um hospedeiro intermediário ou definitivo. A patogenicidade consiste em sua capacidade em causar doença. Já a virulência trata-se do grau de gravidade da doença gerada.

“Quanto mais virulento, mais grave é a doença que pode causar”, prossegue Magela. “Isso serve para qualquer agente: um vírus como o da covid-19; uma bactéria que cause uma infecção intestinal, por exemplo, o botulismo; da bactéria da cólera, o vibrião colérico. São agentes biológicos que interagem com fatores ambientais, químicos e sociais, para que sejam capazes de gerar um ambiente propício para que uma doença se instale em determinada população.”

Endemias amazônicas

A Organização Mundial da Saúde mantém uma lista de patógenos e doenças infecciosas prioritárias, em termos de pesquisa e desenvolvimento, bem como na estruturação da saúde pública para possíveis contextos de emergência. Estão listados o zika, o ebola; as doenças dos Sars-1, Mers, Nipah, Henipavírus, a febre hemorrágica Crimeia-Congo e a do Vale do Rift. No fim da lista, encontra-se a “Doença X”. Trata-se de uma possível e grave epidemia internacional que possa emergir de um patógeno que atualmente não cause doenças em humanos. Seria o caso, por exemplo, da covid-19, incluída recentemente na lista. “Essa Doença X pode ser qualquer doença, causada por qualquer agente, surgida em qualquer lugar, a qualquer momento. É sempre o inesperado, como aconteceu com a emergência desse vírus em Wuhan, na China”, explica Magela.

“Os desmatamentos agudos muito abruptos geram sempre um desequilíbrio entre os mosquitos e os reservatórios que usam para o repasto sanguíneo, porque esses reservatórios fogem. Então, o mosquito acaba tendo o homem como fonte de seu repasto sanguíneo”

“Em um primeiro momento, as pessoas que vivem ali, na margem da floresta devastada, é que serão os alvos da doença. Com o tempo, a população passa a habitar aquele local, que vira a periferia de uma cidade onde o agente pode se espalhar. Dali a um tempo, que não temos como prever, pode ser que tenhamos um problema de magnitude maior. É uma questão sempre presente na Amazônia.”

O infectologista destaca a preocupação com doenças que já se tornaram endêmicas na região. A malária, por exemplo, tem como vetor um mosquito com hábito silvestre, o Anopheles darlingi, “mas o homem [na Amazônia] vive muito próximo da floresta e é impossível evitar que entre em contato”. Há também a leishmaniose, vírus de cinco tipos de hepatites, filarioses, parasitoses intestinais e raiva humana, por exemplo.

Além do mais, as arboviroses são foco constante de atenção. Magela observa que existem mais de 400 arbovírus conhecidos na Amazônia. “Desses, uns 200 já são capazes de causar doenças no homem que entra em contato com a floresta. Temos descritos em torno de 100, sobre os quais conhecemos as famílias de vírus e as doenças que podem causar”, contextualiza o médico. As patologias podem ser uma doença febril indiferenciada, uma febril exantemática – com manchas na pele –, uma encefalite; ou, nos casos mais graves, febre hemorrágica, pontua o infectologista.

Para Magela, existe a possibilidade de o vírus da febre amarela se estender do ambiente silvestre para o urbano, uma vez que o Aedes aegypti habita cidades que adentram cada vez mais as florestas, “apesar de existir uma vacina conhecida bastante segura e eficaz”.

Até hoje, nenhuma zoonose de origem amazônica extravasou as fronteiras da floresta tropical em surtos de grandes proporções. Mas, diante da perturbação dos ecossistemas e dos deslocamentos humanos, existe um risco permanente de eclodir uma zoonose de grande potencial.

“No mundo globalizado, pessoas, bens de consumo e todo tipo de produto circulam pelo mundo em grandes extensões e velocidade – e isso vale também para os agentes infecciosos”, explica Magela. “Eles podem sair, sim, da Amazônia e se manifestar em qualquer lugar do mundo, assim como pode também ocorrer o inverso. Pode sair de qualquer país do mundo e se manifestar aqui na Amazônia ou em qualquer estado brasileiro.”

A chave para evitar Zoonoses de grandes proporções consiste no fortalecimento da vigilância epidemiológica, a nível municipal, estadual, federal e mundial, acredita Magela.

Vigilância epidemiológica

Por que ainda não ocorreu uma epidemia de grandes proporções, até pandêmica, originada na Amazônia? “Na verdade, são vírus que estão dentro desses ciclos silvestres. Portanto, dão-se em uma baixa transmissão por estarem em áreas grandes, com diversas espécies hospedeiras”, explica Marcia Chame, pesquisadora da Fiocruz. “Em todo esse processo de transmissão, nossa grande preocupação é a capacidade de adaptação ao ambiente urbano tanto de vetores quanto dos vírus e de outros parasitos.”

Atualmente, as maiores preocupações quanto a endemias no país são os quatro vírus da dengue, o zika e o chikungunya, pontua Chame. Tratam-se de arboviroses, doenças provenientes de vírus nascidos de artrópodes que precisam de espécies vetoras como intermediárias no ciclo da doença.

Outro foco de atenção da vigilância epidemiológica é a febre amarela. Chame trabalha em um estudo pelo Programa Institucional de Biodiversidade e Saúde, em parceria com o Laboratório Nacional de Computação Científica, com o objetivo de correlacionar os fatores que contribuíram para os surtos de febre amarela que acontecem desde 2017 no Brasil. Os pesquisadores utilizam modelos matemáticos nas análises em uma base de dados com 40 mil características ambientais, de infraestrutura e densidade urbana.

“O modelo, por mais complexo que seja, simplifica a natureza”, pondera a bióloga. “Nós usamos casos humanos de febre amarela, mas utilizamos os primatas como grandes indicadores da circulação da doença. Hoje, sabemos que onde primatas começam a morrer, o vírus já está circulando naquela região e começamos a ter os primeiro casos [em humanos] quase dois meses depois da primeira morte de macacos.”

Para agregar a complexidade da natureza aos sofisticados modelos matemáticos do estudo, o programa conta com o Sistema de Informação em Saúde Silvestre (SISS-GEO), uma plataforma computacional que permite que cidadãos reportem, por meio de um aplicativo de celular, “agravos na fauna silvestre”, a exemplo da morte de animais como macacos, morcegos e roedores.

Com informações georreferenciadas e coleta das amostras biológicas, os pesquisadores estabelecem os “corredores ecológicos” por onde a transmissão caminha. “As áreas de agricultura e pecuária próximas a ambientes naturais, principalmente junto a montanhas e ao longo do leito de rios e de estradas, acabam sendo corredores de dispersão da febre amarela”, observa Chame. “Quando esses corredores encontram uma grande área conservada, de mais de 100 mil hectares, a rapidez com que a febre amarela se espalha diminui de uma forma bastante importante. Mas pessoas estão cada vez mais entrando, desmatando, fazendo condomínios, colocando-se na beira da mata. Elas ficam expostas e a população de primatas que permanece dentro desses fragmentos é pequena. Então, esse ciclo extravasa o ambiente e os hospedeiros silvestres para as pessoas nessas áreas.”

No final de 2019, o SISS-GEO passou a integrar o Sistema Único de Saúde, a fim de auxiliar na vigilância de zoonoses no país. Antes, os profissionais de saúde recebiam os alertas por telefone ou, mais recentemente, aplicativos de mensagens. Os avisos são feitos, por exemplo, por funcionários de parques ecológicos, profissionais de saúde ou pelos próprios cidadãos. Mas nem sempre a localização exata de um animal morto era fornecida. Isso dificultava no deslocamento de equipes para a coleta da amostra biológica de vírus de RNA, que somem pouco tempo depois da morte de um animal infectado.

No SISS-GEO, o usuário registra uma foto do animal e detalha as informações enquanto a notificação é georreferenciada via satélite. Quando a pessoa entra em uma área com rede de telefonia, o registro é enviado ao Ministério de Saúde e secretarias estaduais e municipais. Os profissionais desses órgãos, então, fazem uma avaliação taxonômica para identificar a espécie do animal e elaboram o roteiro da coleta.

“Quando as pessoas ajudam e temos várias informações, é possível construir essa rota para onde o vírus está se dispersando e, pelas características ambientais e dos corredores ecológicos, indicar quais são os municípios à frente que devem intensificar o processo de vacinação da febre amarela”, ressalta Chame. “Assim, quando esse vírus chegar, aquela população humana já estará imunizada.”

A integração do SISS-GEO à vigilância epidemiológica brasileira já surtiu efeito prático. O monitoramento do Ministério da Saúde identificou a circulação do vírus da febre amarela entre julho e outubro de 2019, em São Paulo e no Paraná. As confirmações aumentaram a partir de novembro e identificou-se que a dispersão do vírus ocorria em direção à região Sul e ao oeste do Paraná. De julho de 2019 a maio de 2020, a Secretaria de Vigilância em Saúde recebeu 2.936 notificações de doenças em primatas não-humanos no país, 61% delas na região Sul. Neste período, 348 epizootias foram confirmadas em Santa Catarina, Paraná e São Paulo.

Os primeiros casos da doença em humanos foram detectados em Santa Catarina, em janeiro de 2020. Nos dois primeiros meses do ano ocorreram os picos de transmissão, conforme o boletim epidemiológico de maio do Ministério da Saúde. O Ministério, então, iniciou uma campanha de vacinação que abrangeu municípios das regiões que seriam mais afetadas pela circulação do vírus e de áreas vizinhas, nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Pará. Com isso, apenas 17 pessoas tiveram febre amarela entre julho de 2019 a maio de 2020, 14 delas se recuperaram e três vieram a óbito, segundo o Ministério da Saúde.

No boletim, a pasta ressaltou que o uso do aplicativo do SISS-GEO “possibilitou definir áreas prioritárias para ações de vigilância e imunização com maior acurácia, a partir da metodologia de previsão dos corredores ecológicos favoráveis à dispersão do vírus na região Sul”.

“Pela primeira vez conseguimos estar à frente dos casos de febre amarela, embora ainda continuem acontecendo”, aponta Chame.

Fonte: National Geographic Brasil